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ENADE: Professor Leonardo Campos fala sobre Estado, Sociedade e Trabalho

Olá estudante, como estão os estudos?

Foto: Arquivo pessoal

Professor Leonardo: como nos demais encontros sobre ENADE e atualidades, sempre começamos com a questão dos conceitos das linhas selecionadas pelo INEP, para depois versar sobre as suas associações: comenta para os nossos leitores a conexão entre Estado, Sociedade e Trabalho?

Todos os temas de atualidades propostos pelo INEP relacionam conceitos dentro de um contexto, para que possamos traçar uma reflexão ampla sobre assuntos importantes da contemporaneidade. Debater sobre Estado, Sociedade e Trabalho é reconhecer pontos essenciais do exercício de nossa postura política e, consequentemente, de nossa cidadania. Estado é um conceito que versa sobre parte da constituição política de uma sociedade constituída por grupos de indivíduos organizados e conectados para um bem comum. Nesta sociedade, o estado se apresenta com suas normas jurídicas escritas, tais como Código Penal, Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, a Constituição Federal, dentre outros. Dentro de sua estrutura, temos hierarquias, compostas por governantes e governados, todos em busca daquilo que é considerado bem público, tais como educação, saúde, acesso á justiça e defesa nacional. Quando pensamos em Estado, logo associamos com organização, o que nos leva ao entendimento de que uma sociedade não é meramente um amontoado de indivíduos, mas um sistema ordenado dentro de uma estrutura social com arcabouço normativo, regido por instituições formais e informais, responsáveis por fomentar unidade no campo cultural, punir transgressões previstas nos mencionados códigos legais, bem como definir as regras e papeis para o eficiente desempenho social, econômico e político de um país. O trabalho entra nesta linha para nos permite refletir sobre o papel do Estado na composição de um território que contemple oportunidades justas de trabalho aos cidadãos que estão situados ativamente na sociedade, sendo um assertivo intermediador para ofertas justas e que não agridam qualquer tópico previsto pelos Direitos Humanos, tal como condições análogas à escravidão, dentre outros, coisas que parecem do terreno da ficção, dos roteiros mais tenebrosos, mas que infelizmente é uma dura realidade no mundo inteiro, inclusive no Brasil.

Sobre o conceito de Estado: mesmo que seja algo geralmente compreendido cabalmente por professores de Humanidades e áreas tangentes, é também um conceito para abarcar os Conhecimentos Gerais de qualquer ser humano?

Sim, conhecer adequadamente o conceito de Estado é algo importante para qualquer pessoa preocupado com o exercício de sua cidadania, isto é, reconhecer quais são os seus deveres e saber o momento oportuno para a contemplação dos seus direitos. Precisamos saber que o Estado sempre existiu, desde que os primeiros humanos habitaram o planeta, haja vista a evolução das organizações sociais. A sociedade, por sua vez, existia já bem antes do Estado, algo criado para atender as necessidades dos diversos grupos sociais. Composto por uma sociedade heterogênea, múltipla em suas ideologias políticas, diferenças religiosas, culturais e étnicas, tem-se aqui a ideia do Estado como dispositivo para prover harmonia entre a sua população e abolir discriminações, bem como reduzir desigualdades sociais, promovendo o bem-estar de todos, sem preconceitos em relação às origens, cor, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Na Constituição de 1988, o artigo 3 delineia a construção de uma sociedade livre, justa e solidária como maneira de assegurar o desenvolvimento nacional, erradicando índices de pobreza e a marginalização, sendo estas, obrigações do Estado, dispositivo que estruturado em sua soberania, isto é, uma autoridade superior que não pode ser limitada por nenhum outro poder, numa conjuntura que organizada juridicamente para fazer valer, em seu território, a universalidade de suas decisões. Em linhas gerais, o Estado é uma ordem política da sociedade.

Território e população, inclusive, foram tópicos destacados em alguns momentos de sua apresentação.

Sim, pois quando falamos de Estado e Sociedade, dialogamos bastante com estes termos. Território é a base física onde se encontra, fixado, o elemento humano, local de aplicação do ordenamento jurídico, onde o governo exerce a sua organização validada por estas normas. População engloba todos os que habitam, temporariamente ou não, este território. É um conceito diferente de povo, designação para os natos e naturalizados, o que nos leva a dialogar com população, isto é, falando de nosso país, são os brasileiros e estrangeiros locados aqui. Cidadãos, por sua vez, são aqueles que possuem direitos políticos. Todos estes pontos em articulação nos dá um entendimento melhor sobre o que é e qual a função do Estado, bem como permite refletir melhor sobre o funcionamento de uma sociedade.

“Sociedade”, um dos termos que você brincou durante a sua fala, alegando que é a palavra-chave d quase todas as redações de concursos e vestibulares, é um conceito que também precisamos dominar para exercício de nossa cidadania?

É um momento de humor, pois sabemos que toda redação traz, em algum trecho, aqueles lugares comuns do tipo “na sociedade hodierna”, “precisamos de uma sociedade”, dentre outros comandos normais num tipo de texto que a pessoa precisa trazer propostas de intervenção para a coletividade. Tal como comentado na primeira questão que você me trouxe, a sociedade não é um amontoado de indivíduos, mas um sistema organizado e ordenado. Para compreendermos sociedade, temos que ter noção das suas “necessidades” que a teoria traz quando flerta sobre o assunto: a biológica e a simbólica. No primeiro caso, somos predispostos a viver em sociedade para o desempenho de habilidades indispensáveis ao nosso sobreviver, num processo que envolve aspectos físicos e intelectuais. No segundo caso, temos o simbolismo que nos traz o seguinte: além de suprir necessidades físicas, precisamos impregná-las de sentido, por isso, em sociedade, saímos do lugar de instinto e seguimos as normas que orientam as nossas ações, desaguando naquilo que está previsto em nossa organização social, historicamente acumulativa em seus valores.

Diante do que já foi exposto, chegamos ao momento do trabalho. Há várias vertentes para reflexão, mas o seu foco na exposição foi o processo de uberização na contemporaneidade. Explica para o nosso leitor um pouco mais sobre este conceito?

Os indivíduos da uberização são pessoas que fazem parte do just-in-time, isto é, o trabalhador autogerente que organiza ele mesmo a sua rotina de trabalho, mas pressionado pelas empresas que entram como mediadoras, mas na verdade operam como uma espécie de mecanismo para novas formas de subordinação e controle das relações de trabalho. Muitos jovens do esquema da uberização são moradores de regiões periféricas da cidade. Eles às vezes atravessam uma longa quilometragem para chegar aos grandes centros onde rolam as entregas. Alguns, muitas vezes, dormem nas ruas para evitar atrasos e problemas no cumprimento das metas de um cenário bastante criticado, mas também muito concorrido, afinal, basta assistir cotidianamente os telejornais para saber que estamos muito longe da melhoria nos gráficos que indicam as taxas de desemprego em nosso país. Com dificuldade de inserção no mercado de trabalho, os indivíduos da uberização encontram no aplicativo a chance de trazer para casa o básico para a sobrevivência. É um esquema que parece sem volta, refletido muito bem por Tom Slee em seu livro Uberização: A Nova Onda do Trabalho Precarizado, publicado aqui no Brasil pela Editora Elefante. Em sua publicação, o autor aborda a Economia do Compartilhamento com um sentimento de traição. Ele busca desmitificar a aura de esperança diante da maneira como lidamos com uma proposta que inicialmente, apresentava-se como promotora da cooperação social, numa falsa exaltação da sustentabilidade. Executivos desafiam as regras democráticas, lucram bastante e se aproveitam do cenário de desemprego e miséria para se manter numa fachada de movimento social.

Então este é um tema que desagua em outra abordagem de atualidades: os impactos dos acidentes de trânsito no Brasil.

Um tema urgente e muito corriqueiro. Basta acompanhar os meios de comunicação. A trajetória de trabalho dos envolvidos na uberização estabelece horas longas de trabalho para o alcance de metas. A equação é simples: quanto mais cansado o indivíduo estiver, maiores são as chances de derrapar numa moto, colidir o carro, dentre outras possibilidades que nem sempre são fatais, deixando um contingente substancial de jovens inaptos para o resto da vida, pessoas que compõe o nosso tecido social e asseguram a evolução da economia de um país. Os impactos no Estado também são grandes, pois o que se gasta em atendimento no SUS para situações que poderiam ser evitáveis é uma quantia que poderia ser empregada em outros setores ou na inovação de procedimentos, etc. Ademais, no caso dos envolvidos na uberização, após um sinistro de trânsito, o cidadão não tem nada que assegure o seu futuro, tendo em vista que muitas vezes, a pessoa nunca mais conseguirá exercer a mesma função, a depender da gravidade do acidente em que esteve envolvido. Sem estar com formalmente legalizado no trabalho, a coisa torna-se ainda pior, pois sem vínculo empregatício não há privilégios, sabe? É um esquema que foge das regras mínimas para o bom funcionamento social no que tange ao âmbito do trabalho. Em suas reflexões, Tom Slee, mencionado antes, faz uma denúncia ancorada em dados que comprovam a Economia do Compartilhamento como uma espécie de playground dos bilionários que habitam o Vale do Silício, território de startups de um cenário também chamado de economia dos bicos (gig economy), economia da viração, Consumo colaborativo, dentre outras nomenclaturas destes projetos que desregulam diversas áreas de nossas vidas e promovem a precarização do trabalho, tal como acontece com os personagens da série A Garota da Moto (com trecho exibido na palestra), ilustração para o cenário de tantos entregadores de aplicativos que além das baixas renumerações e ausência de direitos, trabalham em regimes exaustivos, situação que gera o aumento nas taxas de sinistros de trânsito e, consequentemente, mexem com as estruturas sociais das famílias, do SUS que precisa dar atendimento aos vitimados, numa corrente de resultados negativos que demonstram como a uberização é na verdade um vetor de concentração de renda, responsável pela perda da autonomia de muitos trabalhadores da atualidade.

Durante a palestra, os estudantes também levantaram questionamentos sobre a ineficácia do Estado em dar conta das suas próprias políticas públicas de trabalho e emprego para os jovens brasileiros. Como você respondeu ao que foi questionado?

Para se alavancar um país, três fatores básicos precisam ser desenvolvidos: emprego para população, estabilidade de preços e educação pública de qualidade. Precisamos, cada vez mais, intensificar os programas de apoio ao trabalho, dando aos jovens a segurança e assegurar oportunidades justas de emprego para que o seu processo formativo seja erguido com coesão e coerência, tendo em vista dinamizar as relações econômicas do país. Os processos de informalização de nosso mercado global tem criado crescimento do emprego rotativo e de baixa qualidade, por isso, as políticas públicas precisam criar opções mais seguras de trabalho e assegurar o futuro dos jovens brasileiros. Em nosso país, nas últimas décadas, tivemos programas como o PROJOVEM, focado em capacitar jovens trabalhadores para o mercado de trabalho em ocupações alternativas geradoras de renda. A Lei do Estágio, nº 11.788/2008, representou uma evolução na política pública de emprego para os jovens, um vínculo educativo-profissionalizante, supervisionado e desenvolvido como parte de um projeto pedagógico, dentre outros. Estas políticas públicas foram conduzidas a partir de ações voltadas à qualificação profissional e intermediação de mão de obra, tendo em vista contribuir para o reconhecimento e valorização dos jovens como pessoas que precisam exercer plenamente as suas respectivas cidadanias, evoluindo e tornando-se autônomo, conscientes da importância do protagonismo na sociedade em que atuam. O Estado traz propostas, transformadoras, mas a prática nem sempre é tão eficaz, pois para funcionar, as políticas públicas dependem de seus gestores. Muita coisa avançou na primeira década dos anos 2000, estamos estacionados depois das últimas eleições, mas o cenário é um pouco melhor que o nosso passado, tipo, as dinâmicas excludentes dos anos 1980 e 1990, bem mais complicadas que na atualidade.

Como de praxe em suas apresentações, você trouxe indicações para ampliação do repertório cultural dos estudantes. Comenta para os nossos leitores sobre os filmes sugeridos?

A Garota da Moto, série brasileira, não é um entretenimento de muita qualidade estética e dramática, mas diverte e permite uma reflexão assertiva sobre a uberização contemporânea. A série aborda a trajetória da motogirl Joana, interpretada por Christiana Ubach, uma jovem que no passado recente, se relacionou com um homem que jamais imaginou ser casado, figura que depois de anunciada a gravidez da parceria que na verdade era amante e não sabia, decidiu fugir da responsabilidade. Ela trabalha na Motópolis, local de entregas que insere os seus colaboradores nas dinâmicas da uberização, esquema considerado um dos caminhos para o futuro do trabalho, trilha macabra mostrada com graciosidade e senso de aventura na série, mas que na realidade, revela o quão desumanos nos tornamos na contemporaneidade, em diversas nuances, inclusive nas relações de trabalho, precarizadas. O termo é uma referência ao aplicativo de transporte “Uber”, empresa com grande visibilidade na última década e em constante ascensão em nossa rotina de mobilidade na atualidade. Em Privatizações: A Distopia do Capital, o cineasta Silvio Tendler retrata as privatizações e ascensão do neoliberalismo, numa abordagem das ideias políticas e econômicas que defendem a não participação do Estado e a liberdade total de comércio, para, ao menos em tese, assegurar o crescimento econômico e desenvolvimento social do país, algo para nos questionarmos. Democracia em Vertigem, de Petra Costa, reflete a crise política durante o golpe sofrido pela ex-presidente Dilma Yousself, uma situação que estremeceu as bases supostamente sólidas do Estado e trouxe uma vertiginosa turbulência social no país. O Capital, do cineasta Costa-Gravas, tem em seu enredo um debate focado na crise econômica de 2008 e suas ressonâncias no território europeu, retratando a estruturação complexa do capitalismo e sua selvageria na sociedade.

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