O alto consumo de Rivotril no Brasil reflete uma busca por soluções imediatas para enfrentar desafios cotidianos, apesar dos riscos de dependência e da automedicação
O Brasil é um país de dimensões continentais que abriga um enorme contingente populacional. Quando algumas pesquisas tendenciosas apontam falhas no país “nesse” e “naquele” sistema é preciso estar atento aos dados, pois ao traçar comparações com outras nações, precisamos nos ater a quantidade de pessoas que habitam em nosso território, o que às vezes torna determinados rankings injustos.
No caso do uso do Rivotril, há a possibilidade de que seja mais uma dessas leituras gerais, no entanto, baseadas numa realidade absurda. Lembro-me muito bem que em 2010, no auge de um momento de ansiedade, lia a revista Super Interessante, edição que em sua reportagem de capa, nomeou o Brasil como a Nação Rivotril, pois segundo os dados de uma pesquisa investigada na matéria principal, os brasileiros são os maiores consumidores desta medicação em escala mundial.
Na matéria assinada pelo jornalista Bruno Versolato, o texto afirma que hoje é mais raro o refúgio dos problemas para uma praia distante, a ida ao shopping para as compras ou o consumo de um prato bastante calórico e considerado “proibido”. A “onda agora” é todo mundo tomar um “comprimidinho”. Num dos destaques do texto, Versolato aponta que ginecologistas costumam prescrever Rivotril para pacientes que sofrem crises graves de TPM. Segundo depoimento do professor Alexandre Saadeh, integrante do Instituto de Psiquiatria da USP, muitos conseguem o remédio com receita em nome de outros pacientes ou na internet. O medicamento prescrito por psiquiatras para pacientes em crise de ansiedade atualmente tem sido usado pelos brasileiros como um caminho menos tortuoso para enfrentar os problemas cotidianos que acompanham a humanidade desde sempre: insônia, os prazos no trabalho e na faculdade, os conflitos em família e nos relacionamentos amorosos, dentre outras celeumas do existir na contemporaneidade.
Com a pandemia que se arrasta desde 2020 no planeta, os gráficos demonstraram aumentos vertiginosos nestes índices já considerados alarmantes anteriormente. Muitos não sabem, apenas consomem, mas o Rivotril age em nosso organismo estimulando alguns mecanismos que equilibram o estado de tensão da pessoa ansiosa. A ansiedade tratada aqui é o transtorno, não a comum espera por uma camisa de Game of Thrones que vai chegar por Sedex ou aquele sapato caríssimo comparado numa promoção na internet. Estamos tratando do distúrbio que traz calafrios, taquicardia, tremores e uma carga de sofrimento que beira ao insuportável. O comprimido age durante 18 horas em nosso corpo, entre o início do relaxamento, o pico do efeito e a saída do organismo.
Da mesma família dos benzodiazepínicos, grupo que envolve o Lexotan, Diazepam e Lorax, o Rivotril surgiu nos idos dos anos 1950 como substituição para os barbitúricos, tipo de comprimidos responsáveis pela morte do mito hollywoodiano Marilyn Monroe. A caixa traz a tarja preta e avisa sobre o risco de dependência química ou psicológica, mas convenhamos: quem quer sofrer uma madrugada inteira de falta de ar ou derramar lágrimas pela morte de um ente querido? Um comprimido facilita as coisas. Isso, entretanto, é o que leva muita gente a fazer do medicamento parte da sua ingestão diária de sólidos. Ao contrário do que se pensa, o Rivotril mascara o problema. Ao invés de expurga-lo numa terapia, a pessoa que utiliza o comprimido vai pelo caminho mais fácil, enjaulando o problema dentro de si e procrastinando algo para resolução futura. Assim, temos uma sociedade cada vez mais doente e dependente.
Para Plínio Montagna, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, “há uma glamourização no ato de se medicar”. A caixa de Rivotril se tornou ícone da cultura pop, estampada até mesmo como capa de celular. “Emoções normais e importantes para o ser humano, como a tristeza e a ansiedade em situação de perigo são eliminadas porque incomodam”, aponta Bruno Versolato em sua matéria, já mencionada nos parágrafos de introdução desta reflexão, pois “existe a ideia de que todo mundo precisa estar feliz o tempo todo”. Assim, as pessoas estão sempre em busca de qualquer coisa que mascare uma tristeza, uma dor, um mal estar. Como ressalta a psiquiatra Annie Almand, “ninguém mais quer enfrentar a infelicidade”, e reforça, como proposta de intervenção que “nem tudo pode ser medicalizado”.
Outro problema relacionado ao consumo é a automedicação. Muita gente o consome sem atendimento médico. Uma questão bastante complexa, pois como apontado, há o risco químico e o psicológico. No que tange aos princípios da dependência química, o processo é semelhante ao gerado pela cocaína e o álcool, pois o uso prolongado torna o cérebro dependente da droga. Já no caso da dependência psicológica, o usuário pode até deixar de tomar a medicação, mas precisa saber que ela está próxima, disponível como precaução para uma possível crise repentina de ansiedade, afinal, quem já teve uma sabe muito bem a celeuma e fica marcado para o resto da vida. Conforme aponta Anthony Wong, gestor do Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das Clínicas, em São Paulo, a maioria das pessoas tem síndrome de abstinência quando o remédio é retirado de suas vidas repentinamente. Dessa abstinência pode vir até mesmo a necessidade de internação, acompanhada de delírios, agitação, apatia, dentre outros sintomas.
O profissional afirma que para a mudança do quadro, o paciente precisa ter interesse. É muito complicado porque é necessário enfrentar todos os fantasmas de que o usuário buscava se livrar quando buscou a medicação como resolução para os seus problemas. Recentemente uma matéria publicada apontou o Brasil como o país mais deprimido da América Latina. A depressão não está ligada diretamente ao Rivotril, mas são temas que se tangenciam. Muita gente acometida por depressão nem sequer sabe do seu problema e usa o remédio como forma de driblar os seus problemas. Há uma questão social por trás disso, importante ressaltar. O remédio é barato quando comparamos ao valor de uma consulta digna de psiquiatra. O SUS está constantemente sobrecarregado, apesar de ser a salvação para muita gente. Quem pode pagar R$ 400 por uma sessão?
Se você chega ao posto de saúde com uma crise de ansiedade, no mínimo vão aferir a sua pressão, dizer que tá tudo bem, que você precisa se acalmar e que a sua pulseira será verde, pois a médica plantonista está dando conta do rapaz que levou um tiro e da moça que foi esfaqueada pelo namorado. Foi assim que ocorreu comigo 2013, durante uma crise repentina de ansiedade. Há questões mais imediatas e em alguns casos, tais como esse que acabei de mencionar, resultam na busca mais facilitadora para dormir uma noite de sono em paz. Aos que brincam com a situação e chamam a medicação de “remédio para maluco”, muito cuidado. A desordem neurológica de uma pessoa não deve ser motivo para piadas ou brincadeiras jocosas. É uma questão muito séria e que merece bastante respeito, tamanha a gravidade, podendo ser considerada uma questão emergencial de saúde pública e que constantemente estampa matérias de destaque na mídia.
E assim, sem receio algum de me expor, mas desabafar uma história que também pode ser sua, caro leitor, apresento um breve relato de experiência. Na minha história com o Rivotril, por exemplo, tive a sorte de ter mais de uma epifania. Um ataque de pânico ocorrido em 2008 trouxe algumas lições, mas a história ainda se repetiria anos depois. Abandonei a medicação, mas os problemas que surgiram posteriormente foram mascarados pela facilidade que o remédio apresentava na resolução de cada situação. Em narrativas literárias, alguns heróis às vezes não tem a mesma sorte, pois recebem uma revelação e quando não a aproveita devidamente, sucumbe aos caminhos da tragédia. Certo dia, após alguns anos da inicial e agitada vida como estudante de graduação, repleta de anciões e falta de maturidade para lidar com algumas pressões, presenciei uma cena aterrorizante, desagradável, mas bastante irônica.
Uma pessoa que considerava um exemplo a ser seguido, com publicações, muitos livros, postura respeitosa na instituição que ensinava, detentora do tal “poder” para se livrar de amarras burocráticas e conseguir o que queria, a tornando um ente poderoso que muita gente queria se aliar, adentrou pela porta de uma sala de reunião, sentou, começou a falar sobre a agitação da vida e derramou copiosas lágrimas. Sem muito tato, calei-me e deixei os colegas mais íntimos acalentarem. Observei atentamente e pensei: é isso que quero para mim? Acumulação de títulos, suposto sucesso, quando na verdade a pessoa está desmoronando por dentro a ponto de dizer que “parou de tomar o vinho caro por causa do Rivotril, um remédio bem mais em conta”? Não, esse não é o caminho ideal para ninguém.
Sabemos que no bojo do capitalismo e nas relações de poderes que circulam a nossa “microfísica diária”, precisamos lutar muito, gastar energia e às vezes passar por constrangimentos e situações humilhantes em prol da conquista de um lugar privilegiado. No entanto, a pessoa precisa saber equilibrar as conquistas de uma forma que não preencha demasiadamente esta lacuna e esvazie o espaço da saúde mental e física, elementos básicos para saborear o sucesso conquistado. Há muitos que discordam desta opinião e ao lerem o texto provavelmente me chamarão de utópico e romântico, mas como detentor da experiência, digo que este é um dos melhores caminhos para testagem e possível aplicação em nossas vidas. O Rivotril apenas mascara os problemas, é nocivo para a memória e não ajudará ninguém a sair da ansiedade. Pode ser útil durante o ápice de uma crise, mas não deve ser elemento vitalício na existência de uma pessoa.
Você, caro leitor, o que acha?
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