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ENADE: Professor Leonardo Campos versa sobre Territórios, Sociodiversidade e Multiculturalismo

Olá estudante, como estão os estudos?


Foto: Arquivo pessoal

Professor Leonardo: Territórios, Sociodiversidade e Multiculturalismo são conceitos que permitem um manancial de ilações constantes com repertório cultural, em especial, suas indicações de literatura e cultura. Comenta para os nossos estudantes, panoramicamente, esta linha de Conhecimentos Gerais, abordada pelo ENADE?


Este foi um dos encontros mais interessantes, talvez por minha formação em Letras e atuação como crítico de cinema e de literatura. Debatemos os conceitos de maneira mais costurada com as indicações culturais, pois houve aqui uma necessidade maior de conectar o tema com a necessária ampliação do repertório cultural dos estudantes. Quando percebi que num auditório lotado, apenas duas pessoas sabiam quem era José de Alencar e conheciam os romances indianistas Iracema, O Guarani e Ubirajara, fiquei assustado, não por ser uma obrigatoriedade, algo talvez muito pessoal meu por ser do campo da literatura e da cultura, mas por perceber o quão a nossa formação básica se encontra defasada. Assim, comecei com a explicação dos conceitos dissociados, por é uma abordagem que funciona bem para os estudantes, mas logo depois fui trabalhando com objetos concretos, para explicar tais definições por meio de produções que dialogam com a linha temática. Comecei com sociodiversidade, explicando que implica na existência simultânea de grupos humanos organizados dentro de padrões e que dividem o mesmo espaço. Comentei o polêmico conceito de raça e expus que se trata, em linhas gerais, de grupos ou categorias de pessoas que se conectam por uma origem comum. Para falar de multiculturalismo, isto é, a junção de povos de origens culturais distintas entre si, associei com o que se pensa sobre território, isto é, uma zona ou região que estabelece uma jurisdição, pertence a um determinado Estado ou serve fisicamente ou simbolicamente como campo de ação. Destas concepções preambulares, tracei cada conceito panoramicamente, com charges, reportagens, livros e filmes. Com base nas colocações dos ouvintes, foi possível também associar com casos do cotidiano, como a ilustração das zonas de tráfico, ou os embates entre prostitutas e travestir numa reportagem sobre disputa de territórios no Rio de Janeiro, materiais que intensificaram os debates e permitiram maior abrangência do tema.

Ao falar de territórios, você traçou uma abordagem chamada Territorialidades e Territórios. Explica para os nossos estudantes esta escolha?

A noção de território geralmente é debatida com base no campo da Sociologia e ciências correlatas, flertando com a condição dos seres humanos ligados culturalmente e que dividem determinado espaço. Para diversos pensadores deste campo, a territorialidade nasce do instinto do humano ao se apropriar e buscar defender e administrar setores geográficos em que atuam. É no processo de identificação com o território que permite aos cidadãos construir as suas identidades e satisfazer as suas necessidades mais básicas. A territorialidade, como conceito, é um padrão de comportamento e atitude que uma pessoa ou grupo possui, se fundamentando no controle de um espaço físico local ou de uma ideia, controle que pode ser concretizado por meio da personalização, defesa ou marcação de um território. Sabe quando alguém finca uma estaca num terreno para demarcar o espaço em questão? Ou, basicamente, colocamos uma jaqueta ou mochila numa cadeira de uma sala de aula, para situar aquele espaço? Estas são ilustrações de territorialidades, simples, mas que no processo de entendimento de sua concepção, nos ajuda a compreender situações mais complexas dentro deste assunto. Um consulado, território de uma nação que se encontra além de suas dimensões físicas, fora de suas limitações, é uma ilustração assertiva para pensarmos a ideia de territórios e territorialidade. O conceito de território é debatido nos estudos geográficos, sendo uma área de espaço delimitado por fronteiras a partir a partir de uma relação de posse ou propriedade, pensada na questão humana no âmbito político, cultural, econômico e regional. Tradicionalmente, pensamos território por sua conexão com a noção de Estado, dispositivo que exerce a sua soberania sobre este espaço, mas esta concepção rígida há tempos se tornou insuficiente, pois precisamos contemplar territórios informais, disputas entre classes e os diferentes grupos que compõe o tecido social. Pensar este conceito requer considerar relações de poder, além da estrutura física. A linha temática Globalização e Políticas Internacionais, por exemplo, nos ajuda bastante a complementar estas discussões.

Em como é realizada a associação com o conceito de multiculturalismo?

Debater multiculturalismo envolve dialogar sobre contatos humanos no âmbito da sociodiversidade. As questões sobre aceitação e tolerância em paralelo ao processo de conflitos e rejeições, dependendo do esquema social e político de um determinado contexto cultural. É pensar, indicado Said, o Oriente como invenção do Ocidente, os estereótipos sobre o Brasil na ficção audiovisual estrangeira, os nordestinos tratados de maneira preconceituosa pelo povo do sudeste brasileiro, dentre outras temáticas. É uma reflexão sobre culturas dominantes em processos opressivos contra minorias, dentro de um território, vigiado e protegido, ou não, pelas leis vigentes pelo dispositivo soberano que é o Estado. Entender esta linha temática requer dialogar com os processos oriundos da globalização e seus avanços na comunicação, nos meios de transporte e na ampliação das fronteiras de um mundo anteriormente mais fechados em seus compartimentos. Num contexto mundial de redes industriais e financeiras com muita complexidade, dominados pelo imperialismo cultural hegemônico dos Estados Unidos e sua massificação dos modos de ser, debater multiculturalismo depreende compreender apropriações culturais, processos migratórios e de colonização, a aceitação de países democráticos em confronto ao nacionalismo exorbitante que se desdobra na rejeição do “outro”. Basta observar o “muro” da administração Trump lá em 2016, os ataques de civis aos abrigos de refugiados no mundo todo ou o caso brasileiro da governadora que buscou tramitar um processo no STF para combater venezuelanos nas fronteiras do estado que gerenciava. Em linhas gerais, o multiculturalismo emerge a partir das reivindicações de minorias étnicas que ao longo de nossos processos históricos, sofreram opressões de grupos majoritários, num debate que nos permite lidar com as diferenças étnicas, culturais, religiosas e tantas outras concepções que nos cercam.

Quando trouxe estas questões para uma análise no contexto brasileiro, o seu foco foi a questão indígena. Considera esta a principal preocupação contemporânea?

Os conflitos indígenas no Brasil são tema para diversos debates e mesmo que já existam há décadas, conforme relatórios da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), tornou-se algo mais intenso depois de 2018, com as constantes investidas da gestão que devastou os brasileiros. Temos a morosidade dos processos que dialogam com a demarcação dos territórios indígenas. Uma ilustração, dentre tantas, é a denúncia da Associação dos Povos Indígenas do Nordeste (AIPOINME), em outubro de 2021, sobre o assassinato brutal de Alex Barros, tupinambá que foi abordado por três homens encapuzados e armados enquanto trabalhava na roça da Comunidade Serra dos Trempes, no município de Ilhéus, sul da Bahia. Ele sequer teve tempo de reagir e foi alvejado violentamente, algo que constantemente tem acontecido com a comunidade que há bastante tempo, atravessa estes ataques contra as lideranças indígenas. No STF, vários projetos de leis antagônicos aos interesses indígenas passam por tramitações, geralmente com teses dos ruralistas e setores interessados na exploração dos territórios indígenas, tendo em busca restringir cada vez mais os seus espaços. No Relatório Violência contra os Povos Indígenas do Brasil, publicado anualmente pelo Conselho Indígena Missionário (CIMI), em 2018, foram 110 casos registrados, numa absurda mudança em 2019, com 277 casos, demonstração do quão as questões multiculturais e territoriais em relação aos povos indígenas tem se tornado alarmantes no contexto brasileiro.

A perspectiva literária foi utilizada, juntamente com charges, neste momento de sua apresentação. José de Alencar e sua trilogia indianista foram retratados, mas por qual motivo o foco maior no romance O Guarani?

Durante a apresentação, alguém trouxe um relato sobre ter discutido o tema num seminário do Ensino Médio, ao retratar o período romântico da nossa literatura, no século XIX. Há muitos livros mais atuais sobre o assunto, mas acredito que debater os clássicos e realizar uma leitura sobre os seus desdobramentos hoje seja uma alternativa para repensarmos sempre a questão indígena no Brasil e também aquecer o nosso repertório cultural. Dividido em quatro partes, Os Aventureiros, Peri, Os Aimorés e A Catástrofe, o volumoso romance O Guarani faz uma abordagem do Brasil num momento de processo formativo, uma região monumental, paradisíaca, primitiva e cheia de dualidades entre a beleza exuberante e o perigo iminente. Leitor voraz dos documentos deixados pelos cronistas do descobrimento, José de Alencar toma como base das descrições da Literatura de Informação, tendo em vista criar a sua fábula da nacionalidade, numa obra que versou sobre o campo e a cidade, o passado e o presente, o europeu colonizador e o indígena bravo e valente. Na história de amor entre Peri e Ceci, temos a gravitar uma série de elementos idealizados da cultura dos nativos, mergulhados em códigos sociais que nos remetem ao período medieval, como ocorreu de maneira distinta, mas parecida, em Iracema e, especialmente, em Ubirajara, o épico indianista sobre amor e honra. Assim, este romance é uma ótima opção para dialogarmos sobre multiculturalismo, sociodiversidade e questões territoriais.

Próximo ao desfecho, você abordou o filme Território Restrito, de 2009, como uma narrativa ideal para refletirmos sobre a concepção desta linha temática. Expõe para os nossos estudantes, de maneira panorâmica, o que pode ser debatido com esta produção cinematográfica?

Como já abordado em ocasiões anteriores, sabemos que o cinema é uma ótima opção para ampliação do nosso repertório cultural. Para este tema, o debate com Crash: No Limite seria ideal, mas pelo fato de já ter indicado o filme em situações anteriores nas reflexões sobre o ENADE, optei por uma narrativa com um mosaico de necessidades dramáticas, Território Restrito, de 2009, uma produção que traz o mesmo esquema da outra indicação, com diversos personagens interligados dentro de um contexto específico, neste caso, em Los Angeles. Na trama, dirigida e escrita pelo imigrante sul-africano Wayne Kramer, encontramos debates sobre direito a asilo, fraude em documentos oficiais, processos de naturalização, vigilância de fronteiras, conflitos étnicos e abuso de poder. O foco da narrativa é a presença de imigrantes nos Estados Unidos e como o Estado influencia nas decisões sobre o rumo destas pessoas, algumas em permanência ilegal e todas em busca dos sonhos previstos por meio das ilusões do imperialismo cultural estadunidense, apregoadas principalmente nas mensagens do cinema, ironizadas, por sinal, na canção Hollywood, de Madonna, parte integrante do álbum American Life, polêmico em suas discussões sobre multiculturalismo e belicismo na era dos conflitos no Afeganistão, temas também debatidos por Michael Moore em muitos de seus documentários. O filme é uma expansão do curta-metragem homônimo do cineasta, um tenso relato sobre uma cidade sitiada e em crise com os estadunidenses conflitando com judeus, orientais, árabes, australianos, em linhas gerais, figuras ficcionais que desejam viver por lá, mas encontram obstáculos paradoxais para uma dinâmica mundial globalizada. Nesta trama situada num intenso caldeirão cultural, temos deportações, agentes federais antagônicos, um no âmbito da ética e o outro assediador de estrangeiras, numa proposta reflexiva que também nos permite debater outros temas já tratados por aqui sobre o ENADE, tais como Globalização, Política Internacional, Cidadania, dentre outros, também tangencial em Casa de Areia em Névoa, comentado em nosso encontro.

É verdade, houve ainda um grande destaque para Casa de Areia e Névoa. É outra abordagem tão pertinente quanto Território Restrito?

Não costumo hierarquizar, pois cada produção tem uma linha de reflexão. Território Restrito dialoga com as questões mencionadas antes, Casa de Areia e Névoa poetiza de maneira tensa, os conflitos entre seres humanos, neste caso, a residência que se torna um território complexo para os dois protagonistas. Questões multiculturais estão ali, num mundo posterior aos eventos de 11 de setembro de 2001 e do ódio aos orientais, sabe?  Na trama, Kathy é uma alcóolatra que encontrou a abstinência recentemente. Abandonada pelo marido, ela desligou-se do mundo e entrou num estado de depressão profunda, o que ocasionou a perda de interesse por abrir as correspondências. O conteúdo destes documentos informava que a falta de pagamento ou devido encaminhamento para um processo judicial resultaria na perda da casa. No entanto, quem conhece, conheceu ou está passando por um processo de depressão sabe a dor e o sofrimento de uma pessoa acometida por tal processo. Como lidar? O conflito surge porque também precisamos compreender o outro lado. Se ela não pagou os impostos ou recorreu, perdeu o imóvel num leilão, o que o comprador que não a conhece tem a ver com isso? É neste ponto que entra Amir, um coronel do Irã, atuante no regime do Xá antes da tomada do poder pelos aiotalás, o que culminou em sua fuga com a família para terra do american way of life. Será nos Estados Unidos que ele encontrará uma vida diferente. Anteriormente um homem poderoso, passa a sobreviver em dois subempregos para manter o antigo padrão da família: pavimentador de estradas e caixa de um posto de gasolina. Amir vive de aparências, recém forneceu um casamento de luxo para a sua filha e depois de guardar o dinheiro adequado, comprou a casa que leiloada. Capitalista? Doentio? Avarento? São esses alguns dos questionamentos que o espectador pode fazer, no entanto, o roteiro o coloca apenas como uma pessoa em busca de seus sonhos. É uma oportunidade para o estudante ampliar o repertório cultural e dialogar com o debate filosófico de Sartre sobre o inferno ser o outro.

No contexto da linha temática em questão, esta abordagem filosófica pode fazer a diferença para o estudante compreender não apenas o filme, mas as concepções de multiculturalismo também?  

O existencialismo, retratado por Sartre em seus ensaios filosóficos, “é para poucos, pois exige uma honestidade que poucos possuem”. “Deus quis assim”, “A vida está nos testando”. Quem nunca leu ou escutou essas expressões? Nós estamos sempre responsabilizando o “outro” pelas coisas, pois raramente tomamos partido das nossas atitudes, daí o surgimento do jargão “o inferno são os outros”, de Jean-Paul Sartre. Assim, uma obra que nos ajuda a compreender o jargão é o filme Casa de Areia de Névoa, dirigido por Vadim Perelman e baseado no romance homônimo do escritor Andre Dubus III, russo radicado no Canadá há tempos. Como exposto na palestra, na produção, duas pessoas travam uma disputa acirrada por uma casa. De um lado há a frágil Kathy, interpretada por Jennifer Connely, uma jovem mulher que passa por um processo de depressão após ter sido abandonada pelo marido. Por conta de uma falha documental do governo, ela é expulsa de casa. Desesperada, contrata uma advogada para recuperar a casa, um local que ela acredita ser o único símbolo da sua dignidade, conexão com o seu falecido pai. Do outro lado, por sua vez, está Massoud Amir Behrani, interpretado pelo veterano Ben Kingsley, um imigrante iraniano que depois de muito trabalho, comprou a casa de Kathy por um quarto do valor, tendo em vista vende-la futuramente para ter dinheiro suficiente para a educação superior do seu filho adolescente. Uma estadunidense e um iraniano em conflito. Ele num território opressor, pois orientais são vistos com desprezo desde sempre, mas intensificado com os eventos de 11 de setembro. Esta narrativa é uma lição valiosa para debater territorialidade, conflitos étnicos e a filosofia de Sartre, pois em linhas gerais, a ação de um é o “inferno” do outro.

Para finalizarmos, você trouxe questões de asserção e razão e complementação simples para dialogar com sociodiversidade. São tipologias mais complexas para os nossos estudantes num processo avaliativo como o ENADE?

É porque são dois tipos de questões objetivas, mas que pedem uma linha de raciocínio maior dos estudantes, geralmente treinados para responder de maneira robótica as questões, tendo como base os conhecimentos adquiridos em seus estudos. As questões de asserção e razão são conhecidas por representar o maior número de incorreções nas respostas do ENADE, isso nacionalmente, pois os estudantes precisam ler mais atentamente, fazer relações, interpretar com cautela e encontrar a resposta. No caso da complementação simples, também é necessário maior olhar para os dados e enunciados, pois o que está exposto precisa ser interpretado cautelosamente, para que o candidato complemente algo que falta nos dados fornecidos. Eu geralmente utilizo um modelo criado recentemente, tipo: coloco o tema como se alguém estivesse produzindo uma aula num quadro ou num slide, ou então, realizando uma palestra. Digamos que o tema seja sobre Territórios, Sociodiversidade e Multiculturalismo. Nesta questão, a imagem vai trazer uma série de informações sobre a linha temática em questão e o estudante precisa escolher, dentre as alternativas, qual a opção que melhor dialoga com o que está exposto, isto é, conteúdo que complementa aquela exposição hipotética. Os dois tipos de questão geralmente demoram um tempo maior para o estudante encontrar a resposta, mas com treino constante, rotina de estudos em dia e ritmo de leitura dinâmico, é bem possível que não haja conflitos no momento de sua resolução.

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